terça-feira, 9 de agosto de 2016

O olhar do viajante




         O jovem há muito tempo procurava algo que desconhecia. Um sentimento constantemente gritava-lhe nas entranhas, provocando o desconforto dos que não se acomodam às coisas do mundo. Tinha procurado refúgio em doutrinas, seitas e religiões, sem encontrar pouso para o coração inconformado.

               E foi neste estado d’alma que iniciou uma de suas caminhadas pela pequena serra que o acompanhava desde a infância. O céu nublado não escondia a beleza do sol que brilhava sobre as nuvens, e as árvores, que indicavam o caminho, emolduravam a caminhada dos que buscavam, naquele local, um momento de paz e reconciliação.

  Após uma das familiares curvas do caminho, sobre um tronco caído na margem da trilha, estava um homem. Não era incomum que outras pessoas estivessem por ali, mas aquele senhor idoso lhe chamou a atenção. Parou e ficou a observar, enquanto ele acariciava um pequeno pássaro que estava em uma de suas mãos. A pequena ave cantava enquanto o estranho lhe afagava a cabeça.

Então, consumido pela admiração, continuou a caminhada, e a cada passo que dava, a curiosidade crescia. A poucos metros, parou e perguntou:

- Como você faz isso?

Neste momento, o pássaro voou para longe. O homem observou seu voo, placidamente, estampando um belo sorriso no rosto salpicado de bondades. 

- Oh, desculpe-me, não queria atrapalhar.

O homem mirou-o ternamente. O par de olhos negros irradiava uma energia incomum.

- Olá, meu jovem. Belo dia, hein?
- Como faz aquilo?
- Aquilo? – Divertiu-se o desconhecido.
- O passarinho na sua mão....
- Ah! Aquilo. – O homem fitava o céu entre as nuvens. – Bem, você não quer se sentar? Sente-se aqui ao meu lado.

O rapaz assentiu e acomodou-se ao lado do velho.

- Todos são capazes de se conciliar com a natureza. Você me perguntou como eu fazia aquilo e a resposta é essa.
- Mas como reconciliar-se com a natureza? – perguntou o jovem, aturdido.
- A natureza é aquilo que mais nos aproxima de Deus. No mundo externo, não há nada que nos ligue mais à Divindade do que as árvores e os animais, as nuvens e os regatos.
- Mas como obtermos essa comunhão com todas essas coisas? - questionou o rapaz.
 - Bem, disse-lhe que no mundo externo, a natureza nos aproxima de Deus. Ocorre que, em nosso íntimo, há outra força irresistível que nos arrebata em direção ao divino. É o amor. Se pudermos somar essas duas forças: o amor internamente e o contato com a natureza, externamente, poderemos realizar prodígios, como assim o Grande Mestre nos ensinou.
  - E como encontrar o amor, em um mundo com tantas tribulações? Como apreciar, com enlevo, um cenário que me parece tão efêmero?

E o homem pediu que o jovem fechasse seus olhos. Então, começou a falar:

"Andai pela Terra como o viajante que a tudo observa, ciente, porém, que a paisagem que o cerca somente pode ser guardada nas reminiscências de sua memória. Olhai a paisagem, não como o habitante que acostumou as vistas ao relevo que se apresenta a sua frente, mas como aquele que pela primeira vez vê se revelarem, aos seus olhos, as belezas infindáveis da natureza.

Porta-te como o andarilho sem pouso em terras estranhas. Saibas que essa não é a tua morada definitiva, mas sim uma hospedaria que tens que compartilhar com outros viajantes e, juntos, desfrutando dos prazeres do caminho e dos perigos das encruzilhadas, possas relembrar o teu verdadeiro mundo e desejar o retorno a ele, onde poderás viver a vida verdadeira, sem ilusões e sem medo.

Mas enquanto teu caminho encontra-se atrelado a este planeta, aprendei a admirá-lo, como o passageiro do trem da existência, que não cansa de se deliciar com a paisagem que vê através das janelas do vagão que ocupa, sem nunca, entretanto, considerá-la definitiva, mas enxergando a beleza de sua transitoriedade.

Tudo neste mundo é efêmero, e pobre daquele que deposita toda a sua confiança nos valores da existência sensorial. É como o marinheiro desprecavido que ancora seu navio em mares tempestuosos, onde, a qualquer momento, o vento e a tormenta podem tragá-lo.

Mas venturoso é aquele que fixa o alicerce de sua existência nos valores reais, pois como aquele que edifica sobre a rocha, não se sobressalta. Não se engana o que tem o amor por fiador, a caridade por avalista e a fé por garantia. Tudo neste mundo passa, só não aquilo que transcende a natureza efêmera de nossa experiência material. É como o violino que se desgasta e a música que se eterniza, assim somos nós e os nossos sentimentos e atos. A terra que nos consome não nos transforma, mas nos devolve à realidade onde nada ou ninguém é capaz de travestir-se.

O amor, assim como a confiança e a ternura, não são objetos que possam ser enxergados por nós, nesta breve passagem no planeta Terra. É por isso que não podemos nos contentar somente com os olhos da face, mas apelar aos da alma, que enxerga além de nossos primitivos sentidos, tornando a viagem mais serena e o caminho menos sinuoso.

Tenhamos os olhos do viajante que espera ansioso o fim da jornada, sem, entretanto, jamais descuidar-se das pedras do caminho, tampouco acostumar-se ao balançar da embarcação. Do viajor que olha o horizonte como que a adivinhar o desenho do porto que o aguarda, sem deixar de admirar, todavia, o sol refletido nas ondas ou a lua que cresce e míngua sobre seus olhos extasiados.

Admires a beleza das estrelas que palmilham o firmamento, como uma chuva de prata eternamente a cair sem, contudo, beijar a face da nossa Mãe Terra. Saiba, porém, que tua casa está mais próxima delas do que daqui, onde somente encontra-te pelas necessidades que apresentaste e pelas lições que tens a aprender.

Ouças os mais velhos, com suas histórias e lendas, para saberes, com menor sofrimento, como evitar os deslizes do caminho. Não te atenhas, no entanto, às palavras daqueles que apesar da idade não aprenderam a viajar, e tornaram-se sedentários em suas manias e pequenos prazeres que os atrelam na terra árida e estéril.

Observes os mais novos, visto que, recém-chegados a esta existência, carregam ainda, dentro de si, uma lembrança mais vívida da pátria espiritual. Mas não te confundas com as imprecisões próprias da juventude, que muitas vezes despreza o fundamental, ao apegar-se às formas e às sensações.

Não queiras abreviar a travessia, tampouco estendê-la. Aquele que sabe onde chegar segue sem medo, pois confia no timoneiro que leva o barco por águas seguras. A vida é a viagem e o destino é o caminho. Faças que teu destino se concretize, inovado pelas boas ações advindas de seu livre arbítrio. Vivas como se a cada momento fosses chegar à estação final, e lá fosses ser recebido por teu Pai, que ansioso aguarda para verificar como está seu filho querido, após tanto tempo de provas e lutas.

  Procures sempre levar uma palavra de consolo aos necessitados. Circule entre todos os companheiros de jornada, não diferenciando aqueles que viajam na 1ª classe dos que vão nos porões da carência. Trates a todos humildemente, colocando-te à disposição para auxiliá-los nos momentos de turbulência. Entre os mais pobres também estão os nobres voluntários que estão adiante de ti no processo da evolução do ser.

Sejas o salva-vidas sempre pronto ao auxílio, sem esperar a desnecessária contrapartida do dever cumprido. Resgates das ondas os desavisados de espírito, conduzindo-os aos hospitais da alma, para que dali retirem o conforto necessário aos náufragos de seus próprios erros. E depois retorne ao palco das inevitáveis lutas para, incansavelmente, sofrer as tuas e as alheias dores, aliviando o flagelo dos que há muito perderam a esperança. Sejas o bálsamo que alivia e a luz que ilumina os que andam pelas trevas, trôpegos em suas chagas incuradas.

Valorizes teus atos, mas não os deixe se impregnar pela soberba ou pelo orgulho. Que tua destra pratique o bem enquanto a esquerda acaricia os que precisam do teu alento. Sejas um exemplo para que os frutos da tua criação mirem-se em ti na jornada que iniciam.

E, sobretudo, ame, ame tudo e todos. Ame incondicionalmente a criatura e o Criador. Ame infinitamente e transborde esse amor, como uma taça que, depois de cheia, oferece seu precioso néctar a quem o procura. Transforma-te em um pólo irradiador de um amor que só pode ser encontrado no mais íntimo de teu ser, naquela região desconhecida que é a chama que te anima, que é a sede da tua consciência. Funda-a com a Consciência Universal, e somente aí, mesmo andando sobre os pântanos da incompreensão, poderás, por fim, virar teus olhos para o infinito dos céus e ali reconhecer a ti próprio, absorto na Divindade infinita."

O doce som das palavras daquele sábio ainda reverberava no espírito do jovem, que somente após algum tempo se deu conta que ainda permanecia com os olhos fechados. Quanto tempo havia passado desde o momento em que viu o estranho com o pássaro nas mãos? Quem seria aquele velho homem que tinha o poder de inebriar-lhe com seus suaves versos de ventura e felicidade? E como a despertar de um inesquecível sonho, voltou seu olhar entre lágrimas de emoção ao homem que lhe oferecera aquilo que resumia as lições que procurara por toda a existência. E naquele momento, antes que pudesse enxergá-lo, uma suave brisa beijou-lhe o rosto, e um perfume elevou-se por todo o seu corpo.

               E, percebendo que o seu companheiro já não estava mais ali, compreendeu então que ele se retirara simplesmente porque mais palavras iriam conspurcar a beleza do momento. Então juntou suas mãos e agradeceu, em prece, o presente que lhe havia sido ofertado, graciosamente, pelo desconhecido. E um pequeno pássaro aproximou-se, voando, sobre seu ombro, e ali pousou calmamente, pondo-se a cantar a mais bela melodia que jamais tinha ouvido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...